terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Justiça ou Vingança?


A justiça selvagem

O desejo de vingança é uma constante na história
humana – e um dos grandes temas da literatura
por Jerônimo Teixeira

Alexandre Dumas (1802-1870) foi o equivalente, na França do século XIX, aos roteiristas da novela das 8 no Brasil de hoje. Românticos e aventurescos, seus livros alcançavam um público vasto e voraz. Um de seus romances mais populares, O Conde de Monte Cristo (tradução de André Telles e Rodrigo Lacerda; Jorge Zahar; 1 376 páginas; 129 reais), acaba de ganhar uma belíssima edição, com notas e ilustrações de época. Narra as desventuras de Edmond Dantès, marinheiro preso sob a acusação falsa de ser partidário do imperador deposto Napoleão Bonaparte (ofensa grave em 1815, tempo da restauração monárquica). Depois de uma fuga espetacular da prisão, Dantès, enriquecido por um providencial tesouro escondido, reinventa-se como o Conde de Monte Cristo e busca destruir aqueles que o desgraçaram. Os exageros folhetinescos de Dumas – vilões que soltam "faíscas de ódio" no olhar – hoje soam um tanto cafonas. No entanto, Monte Cristo sobrevive. Um coração generoso dirá que o apelo da história está na restauração da justiça. O motor do romance, porém, é a vingança. Embora todo cidadão de bem declare sua aversão moral pelo conceito, a vingança delicia leitores há séculos.

"A vingança é um tipo de justiça selvagem" que deve ser "arrancada, como uma erva daninha, pela lei", escreveu o filósofo Francis Bacon, no século XVII. De fato, o estado de direito só pode existir quando a lei substitui as velhas retaliações tribais. O aparato judicial moderno deve, portanto, se afastar da vingança. No entanto, esta sempre fará parte da natureza humana. E é nessa condição que se tornou um dos motivos literários mais antigos – basta pensar no grego Aquiles, na Ilíada de Homero, arrastando com sua biga o cadáver do troiano Heitor, para vingar a morte do amigo Pátroclo.

Cada período histórico tem sua sanha vingativa particular. Na tragédia grega do século V a.C., a vingança costumava ser exercida contra o próprio sangue: Medeia (leia o quadro abaixo) é o exemplo mais terrível. Na virada do século XVI para o XVII, época áurea do teatro inglês, houve mesmo um subgênero particular devotado ao tema – as "peças de vingança". Thomas Kyd, que inaugurou o filão com A Tragédia Espanhola (1587), é também o provável autor de uma primeira versão, que se perdeu, de Hamlet – história hoje conhecida e admirada na versão de Shakespeare. Em sociedades mais dinâmicas que as monarquias retratadas por Kyd e Shakespeare, a vingança começa a se amalgamar com o ressentimento social. Heathcliff, o herói perverso de O Morro dos Ventos Uivantes (1847), clássico romântico da inglesa Emily Brontë, busca a desforra de humilhações sofridas na infância, quando foi adotado por uma família de proprietários rurais que o tratou como servente. De certo modo, ele é o avô dos marginais cariocas que caçam os ricos nos contos de Rubem Fonseca. Com suas enormes diferenças, cada um desses autores explorou uma ambivalência humana fundamental: a fome por justiça convive muitas vezes com a sede de sangue.

Prato que se come frio


Alguns vingadores célebres da literatura

Em família
A tragédia grega pôs em cena vários mitos em que a vingança era exercida dentro da própria família, com assassinatos terríveis de filhos e mães
Exemplo
O caso mais extremo é o de Medeia, na peça de Eurípides: ela mata os próprios filhos para se vingar de Jasão, que a trocou por outra mulher


O injustiçado
Na sociedade mais dinâmica do século XIX, a ascensão social tornou-se fundamental nas tramas – e também a injustiça
Exemplo
Para Edmond Dantès, protagonista de O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, ficar podre de rico é o pré-requisito para a vingança

O ofendido
O vingador busca reparação para o que julga ser uma grande ofensa – da qual o suposto ofensor às vezes nem tem consciência
Exemplo
Em O Barril de Amontilhado, de Edgar Allan Poe, o vingador empareda seu inimigo numa catacumba. O conto não diz que ofensa ele cometeu para receber esse castigo terrível

O ressentido
Geralmente pobre, o vingador tem raiva dos mais ricos, a quem atribui sua condição humilhante
Exemplo
O personagem central de O Cobrador, conto de Rubem Fonseca, é um pobre-diabo que encontra a realização matando os ricaços

O usurpado
As "peças de vingança" foram um gênero popular no teatro inglês entre os séculos XVI e XVII. O herói vingador é um cortesão injustiçado ou um nobre cujos direitos são usurpados
Exemplo
Hamlet, de Shakespeare, traz à cena um príncipe que vinga a morte do pai – mas essa trama quase se perde no meio de elucubrações filosóficas.

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